domingo, 31 de janeiro de 2010

Creme Pequeno

Esta crônica não é minha mas eu adorei. A autora conseguiu com sua singela delicadeza traduzir nosso modo de viver no abraço de um ursinho de pelúcia. Vamos ao texto:


"Creme pequeno. Constava em sua pequena etiqueta. Era um ursinho de pelúcia lindo e felpudo; creme e pequeno. A etiqueta era praticamente sua identidade. Que outro nome poderia eu dar ao urso diante de tal comprovação, senão este? Creme Pequeno. É o seu nome. Como os índios do cinema nomeados por suas características: Pele Vermelha, Leão Bravo... Como os fulanos da bíblia que tem sua história inteira resumida no nome... Creme Pequeno. Gracioso. Combina com a gravatinha vermelha, com seu valor irrisório.  Comprei-o por valor tão ínfimo, mas constatei sua identidade. 
Ele sendo apenas brinquedo tinha nome, sobrenome e um código só dele, como eu e você, tão gente que somos. Temos nome, sobrenome, RG e um preço. Tão brinquedos que somos. Não me entenda mal, desconfiado leitor, quando digo que temos um preço. É fato. Temos. As pessoas pagam por cada hora do meu trabalho. Eu paguei R$200,00 pela hora de trabalho do cara que me fez voar de asa delta. Minha faxineira cobra R$50,00 pelo dia de trabalho. Uma prostituta de luxo ganha bem mais por uma hora de sexo. As mais baratas nem chegam a isso. Alguém me contou que num prostíbulo de uma favela do Rio de janeiro é possível encontrar mulheres à R$ 1,99! Uma bagatela! Então, você, revoltado leitor, me olha no texto e diz: Nós vendemos a nossa força de trabalho! E eu digo: sim, é claro! Vendemos uma força de trabalho medida por tempo. Tempo de trabalho em si e tempo que dedicamos adquirindo competências para o trabalho escolhido. Tempo. É só o que vendemos. Só? E tempo não é vida? Morrer não é o fim da contagem de tempo para o morto? Se vendo meu tempo, vendo vida. Se vendo vida, vendo tudo de mim, inclusive meu corpo. Sou tão prostituta de mim quanto uma mocinha que rebola nas madrugadas vendendo sexo. Não, não culpo a mim, ou a você, ou a mocinha da noite... Não! Somos todos iguais esta noite... Só lhe pergunto uma coisa, apreensivo leitor: qual é o seu preço? Quanto você ganha é o quanto você vale? Quantas horas de você satisfazem o outro? Ah, compreenda... Não importa como te usam; se baixam suas calças ou são seus alunos num colégio conservador. Professores, prostitutas, músicos, escritores... Todos nós vendemos preciosas horas em que poderíamos apenas ser. Ensinar quem quisesse. Transar com quem quisesse. Cantar e escrever o que melhor aprouver...  Mas não. A gente deixa de ser por horas diárias em troca de... Não, apressado leitor. Não vou falar de dinheiro. É simplista demais. Trabalhamos em troca de um “aparato técnico” que nos faz mais “humanos” e “civilizados”. Menos bicho. Bicho vive de circularidade. Bicho come respeitando uma cadeia alimentar onde a maioria come e é comido por alguém. Bicho não tem vergonha de defecar. Seu cocô é vida para as plantas. Bicho se vê parte de um todo. Gente não. Gente equipa a casa com alta tecnologia, mas tem nojo das sobras do seu prato. Em vez de adubo, lixo. Gente joga suas fezes no mar... Fezes, lixo comum, lixos tóxicos... Pra onde vão tantas sobras? Não importa. Sou humano. Cuido do meu domínio particular. Outros cuidam dos outros domínios. Não é problema meu. Cada um faz a sua parte. Portanto a moral imoral da história é que a gente se vende pra se desligar cada vez mais de um elo maior. Conforto é sinônimo de independência de tudo e de todos. Pense bem. Ar condicionado: fecho minhas portas e estou protegido do calor. Sons portáteis: escuto apenas o que quero ouvir. Carro: diminuo as distancias. Não preciso de bichos para me locomover mais rápido. Avião: posso até voar... Então, todo aparato técnico que ambicionamos resumi-se em compensação ao que a natureza não nos deu. E não queremos depender dela pra nada... Toda lógica da natureza é cíclica, funções que se completam mutuamente. Um elo. Qual será então o preço por quebrarmos esse elo? O caos, eu suponho.
            Cansei. Melhor parar por aqui."

Por Déda Lizz

domingo, 24 de janeiro de 2010

As Duas Damas

Há uma dama especial que passeia na escuridão da noite, ou no fulgoroso dia. Entre luzes e sombras melancólicas sua indiferença assusta incautos. As vezes ela faz seu trabalho sozinha outras vezes as Walkírias cavalgam ao seu lado, com seu trote valente buscando a companhia dos bravos. Essa dama não conhece a tristeza ou felicidade. Simplesmente trabalha com precisão. Não há maldade em sua lida, também não há justiça, apenas desfecho igualando grandes e pequenos. Seus amantes são desdenhados, como toda mulher ela quer os que não a querem. Mas tem a vantagem de ser paciente, de saber que ninguém lhe escapa. Certo dia vi sua face bela, pálida e fria. Sedutora e atraente me tomou em seus braços, beijou meus lábios. Resisti a sua beleza. Me guardava pra outra dama, mais linda, mais doce. Mesmo assim ela brincou comigo. e deu de beber seu vinho amargo. Ela me deitou em sua ante sala, acariciou meu corpo e por fim, como a maioria das mulheres, me desprezou. Mesmo assim trago as marcas daquele encontro. Confesso que já senti saudades dela, mas prefiro sua irmã. Uma mulher imprevisível, cheia de surpresas que exige coragem de quem a acompanha. A irmã vivaz é inquisitiva, não te deixa ao largo, passa por você e te convida, mas não te espera. Quem é sábio a acompanha sem fazer perguntas, simplesmente vai no seu tempo, no seu caminho e aproveita das delicias e agruras que ela oferece aos seus fiéis. Enquanto que vestida de preto pacientemente sua irmã espera seu momento.

da série poetadas

Enquanto Falo

Deitado ao lado de um vulcão em brasas
Ardo em desejo e aponto o céu enquanto falo
Falo tanto que grito silenciosamente em brasas vivas
Enquanto falo sinto meu ser envolvido
Círculos que consomem no encaixe
Círculos que giram e mastigam com gula
Enquanto giram sobre discursos mudos
Círculos que movimentam corpos
Enquanto falo  devorado
Convulsiono numa boca faminta
Que morde sem dentes enquanto busca
A vida esbranquiçada que brota do discurso enquanto falo
Tanto busca que recebe em si boca quente o pulsar constante
De uma fala que declara o ser do Falo consumido em sua missão poética

sábado, 9 de janeiro de 2010

A razão e a dentada


Agarrado a uma bóia murcha o naufrago vê barbatanas na água.  Ele sabe o que significa, mas não visualiza como sair da situação.  Buscando todas as conexões mentais disponíveis ele raciocina, usa seu intelecto. Pensa em tudo que poderia estar ao seu alcance para garantir a sobrevivência e mesmo assim, ele sabe que o fim está bem perto, travestido de mandíbulas poderosas com dentição dupla e transfixas. 
A situação é extremamente angustiante e nós aqui lendo esse relato terrível ficamos confortáveis por nossas poltronas macias que nos protegem dessa cena amedrontadora. Eu sei meu caro leitor, você queria que aparecesse um barco salva-vidas, uma canoa, um anjo do céu para retirar nosso herói dessa enrascada, mas eu não vou permitir esse perdão.  O homem cercado por tubarões acreditava que poderia dominar a natureza, destruiu os plânctons com seu lixo industrial, matou tartarugas jogando plástico no mar, queimou mais petróleo que devia e abalou completamente a cadeia alimentar. Por isso ele está cercado e cada minuto que passa o cerco se fecha um pouquinho.
Nossa razão falhou, mesmo assim não abrimos mão dela.  É como um carro velho ultrapassado o qual insistimos em mandar pro mecânico para ele dar um jeitinho. Confiamos plenamente no nosso instrumento torto, mesmo quando os principais  mecânicos da razão, os filósofos, já não acreditam tanto nela como tábua de salvação da humanidade.  Nossos principais sistemas filosóficos, políticos, econômicos, jurídicos, os principais sustentáculos da sociedade atual estão ruindo.  A rachadura é profunda e todos os tipos de cimento disponíveis não mostraram efeito.  Mesmo assim confiamos na técnica, no domínio completo da natureza, na supremacia racional.  O século XX foi testemunha de como nosso sistema não nos levou ao progresso. Tudo bem encurtamos distâncias, aumentamos nossa comunicação e nos últimos 10 ou 20 anos foi produzida mais informação que todo o conhecimento acumulado pela humanidade nos últimos milênios e – penso cá com meus botões -  haja spams. A medicina controla a vida e a morte cada vez mais, mas será que era pra ter tanta gente num ecossistema tão mal equilibrado? Continuamos acreditando que a tecnologia vai nos salvar da miséria de nossas opções.  O pior disso é que a razão ocidental triunfante agora vê devagar os donos das barbatanas farejando a presa preparando a dentada que mais cedo ou mais tarde vem, não vai só doer.

Saudações 2010

Primeira postagem do ano e eu não estou muito otimista, como sempre, diria minha mulher.  Mesmo assim eu mantenho a fé na vida e, principalmente, em Deus. Sei que meu amigo não nos abandonou.  Independente disso seguimos como frutos de nossas escolhas. Eu por exemplo escolhi melhorar, cada dia um pouquinho por vez, pretendo ser melhor.  A vida merece.
Hoje mesmo, depois de décadas - oh meu Deus, eu já falo em décadas - fui a Paquetá. A ilha continua uma graça, cheia de paisagens belas e deslumbrantes. Casas lindas que afirmam claramente que os proprietários não são fracos. Até o governador tem sua ilha particular ali de frente pra praia da Moreninha do Alencar, com sua inscrição nada convidativa: não aproxime-se.  Como um menino obediente que sou, respeitei a placa. O mar estava ótimo, apesar das gigogas e daquela espuma estranha.  Resolvi não reclamar, minha deusa estava radiante e eu queria dar a ela um dia especial.
Continuando as peripécias do ano fui ver Avatar. Fui meio a contragosto, achando que o filme seria só um desfile de computação gráfica em 3D. Aproveito pra confessar que nunca tinha visto um filme em 3D e achei a sensação bem diferente.  Mas o filme não era só isso, diverte e, se você quiser, pode fazer pensar. Pra resumir de maneira bem sintética foi como se espanhóis tivessem levado porrada dos astecas.  Além disso faz perguntar será que nós, raça humana, merecemos mesmo continuar? Também vi 2012, numa sessão não ortodoxa, com péssima qualidade e, apesar da aguá com açucar esperançosa holiwoodiana, também tive a mesma impressão.  Foi tão forte que gerou a próxima crônica deste blog.
Ano novo novas oportunidades pra continuar vivo.  É isso que pretendo nesse ano, viver melhor a cada dia, aproveitar a beleza da vida, reclamar menos - estou até fazendo um programa reclamação zero que depois eu explico -, continuar respirando e seguir com minha política: se me deixarem entrar, tô dentro.
Beijos a todos.